O VÍRUS DO EMPREENDEDORISMO SEM SENTIDO ESTÁ
ACABANDO COM VOCÊ
Os mesmos produtos, os mesmos
termos, o mesmo sotaque, os mesmos sites e blogs com os mesmíssimos templates.
Afinal de contas: o que é que você está fazendo com a sua carreira e com a
sua vida?
Me chame de Dr. Otto. Estamos
no dia 23 de maio de 2022. Já faz alguns anos que perdemos Nova Iorque, São Paulo, São Francisco e
outras capitais para os contaminados. O que havia começado como uma gripe, sem
levantar qualquer tipo de suspeita, cresceu e tomou de assalto todo o
planeta. No início, os jovens eram os mais suscetíveis, mas
depois de um tempo todo tipo de gente começou a cair para o que ficou conhecido
como “A grande oportunidade”. O vírus não só era altamente
resistente a todo tipo de soro, como não havia vacina. Com a deterioração da
economia, a sua disseminação se tornou ainda mais rápida.
O vírus? A moda do empreendedorismo sem sentido.
Ainda não sabemos qual foi o paciente zero,
mas os cientistas já rastrearam a linha de contaminação e chegaram a uma
data: 2008, quando a conexão a cabo se tornou mais acessível e os
computadores ficaram mais baratos. Ao que tudo indica, a transmissão ocorre
através da internet, se aproveitando de zonas de alta circulação, como o
Facebook e outras redes sociais, para infectar um número cada vez maior de
pessoas.
Até então, o vírus não só era assintomático,
como era possível verificar o contrário: uma vez contaminado, o agente passava
a se comportar de maneira positiva e estimulada; a energia crescia e os
pensamentos positivos surgiam em sua cabeça. De uma hora ou para a
outra ele passava a acreditar que poderia mudar o mundo.
“Vamos, vamos! Precisamos acordar às 5:00, evitar o
glúten e fazer yoga! ”
No dia 9 de março de 2009, tudo mudaria. Havia surgido o Whatsapp.
O aplicativo agia como um grande vetor de
disseminação, atraindo as pessoas já contaminadas para dúzias de grupos que
tinham como único objetivo a pulverização do vírus. Até 2012 a ferramenta ainda
era utilizada para trocar mensagens e áudios entre amigos, mas as coisas foram
piorando e se deteriorando com uma velocidade inacreditável. Em pouco tempo,
perderíamos as rédeas da situação para sempre.
Quando tudo começou a sair do controle.
“Você teria cinco minutos para falar comigo sobre
uma grande oportuni…”
O que sabemos até então é que a falta de
estímulo é o principal agente de combate à doença. Uma vez desestimulado o
indivíduo, o vírus resiste, fazendo com que ele retorne ao estado reconhecido
como “mindset vencedor”.
Até há pouco tempo, esse sintoma era um
desconhecido da classe médica, mas foi com o agravamento da crise política do
país, antes do impeachment do Presidente da República, que ele começou a se
mostrar em sua versão mais agressiva. Provavelmente o vírus havia
sofrido uma mutação violenta.
Agora, quem havia sido contaminado
apresentava, pela primeira vez, o descolamento da realidade. Esse
quadro foi percebido pela primeira vez quando um paciente relatou que receberia
um bilhão de obrigados pelo seu trabalho; até colocou data! Outro, disse que
levaria à 30% da população do planeta terra inteiro a sua mentalidade. Em pouco
tempo, percebíamos que os sonhos se tornavam cada vez maiores e o desejo de
transformação mais e mais violento.
O que mais nos assustava, como médicos, é
que nem mesmo os maiores ditadores do planeta haviam acreditado que poderiam
fazer esse tipo de coisa. Nunca, Mao Tse Tung ou Hitler, haviam exigido palmas
de um bilhão de pessoas ou planejavam ser conhecidos por 2 bilhões de sujeitos,
quem dirá incutir neles a sua mentalidade.
O início do fim.
Acostumados com o altíssimo nível de
endorfina no sangue, quem era contaminado precisava experimentar a sensação de
sucesso. Descobriríamos meses depois que a cada negócio fechado você precisava
de níveis cada vez mais altos de satisfação para que o sistema todo não
desmoronasse.
Passaram, então, a fecharem negócios uns com
os outros, vendendo produtos sem sentido, que prometiam mudar o mundo — quanto
maior a promessa maior o êxtase —, mas que eram meros sacos de ar. O dinheiro
que ganhavam de uns gastavam nos outros. Estava claro que nada daquilo se
sustentaria por muito tempo.
Já em 2016 observávamos os contaminados no
que chamaríamos de “grande ausência de identidade”. Faziam
Yoga para fecharem negócios, abriam mão do glúten para ficarem alertas,
acordavam e dormiam pensando em alta-performance, para que pudessem gerar mais
clientes, que lhes dariam mais dinheiro, que era o combustível para toda essa
ciranda.
O discurso era altamente sedutor: “Trabalhe em casa, conheça o mundo,
demita o seu chefe, viva o seu sonho, seja quem você quiser ser! ”.
Na fase final de descolamento da realidade a
coisa toda se tornava tão histérica que chegavam ao ponto de imitarem uns o
sotaque dos outros. Falavam os mesmos jargões, vestiam as mesmas roupas,
nominavam seus produtos com as mesmas expressões…
O dinheiro era o rei. O dinheiro era Deus.
Criaram uma espécie de religião: a
teologia da prosperidade. Se encontravam em galpões e dançavam juntos,
gritavam, golpeavam o vento e diziam uns aos outros que manter todo aquele
nível histérico não só era possível, como era preciso! Se tornaram coaches
comportamentais, de sono, de hábitos, alimentares, de relacionamento…invadiram
todos os campos, salgando toda a terra e se apropriando de todas as áreas do
conhecimento humano.
Por fim, o fim.
Após quase duas décadas, o vírus começa a
apresentar os primeiros sinais de esgotamento. A vida é preciosa e o corpo
humano é um milagre. Aos poucos, observávamos os primeiros agentes que
conseguiam, sozinhos, combaterem o vírus. O cérebro, depois de um
tempo, entravas em curto, percebendo que não havia um final para esse túnel. Após
tanto dinheiro perdido em busca do dinheiro fácil, percebemos um retorno a
realidade, que vem aumentando.
Já tivemos pacientes que retornaram às suas
áreas de vocação, que descobriram o que gostam de fazer e que decidiram
abandonar os templates, jargões e pirâmides. Gente que apagou do computador as
máquinas de escrever e-mails, resquícios de quão fundo nós chegamos nesse poço.
Hoje, 23 de maio, já registramos mais de quinze mil fotos de terno e braços
cruzados removidas do Facebook e todos os dias dúzias de grupos de times de
vendas somem do Whatsapp.
Não encontramos um vídeo de vendas de 45
minutos há quase dois meses e as pessoas já não deixam mais dinheiro no
para-brisa do carro dos outros há um ano. Enfim, a realidade dá sinais de que
vencerá tudo isso...
Explicando tudo isso.
“Acenda um cigarro, tome uma garrafa de vinho e
pare com essa porra de Yoga-funcional”.
Dr. Otto é um personagem fictício, mas que representa com fidelidade o que venho
observando no campo do empreendedorismo nos últimos anos. Me dói
admitir, mas nós perdemos a mão em algum momento da história. O que deveria
ser uma atividade que viabilizaria a nossa liberdade e nos daria mais tempo
para fazermos o que gostamos e estarmos mais perto de quem amamos se
tornou — tão e somente — uma corrida dos ratos.
Cada vez que eu vejo um empreendedor escolhendo o que fará pelo que
“está dando mais dinheiro” e não seguindo sua vocação, é uma facada
no peito.
Preenchemos a nossa agenda, regulamos o
nosso sono, restringimos a nossa alimentação e até mesmo decidimos o que
faremos pelos próximos anos da nossa vida atrás da ideia de que poderemos
viver — mais para a frente — da maneira com que nós sempre sonhamos.
Ei, você, uma dica: nós podemos fazer isso agora.
Ao invés de mais uma reunião com aquele
grupo de empreendedorismo, opte por um bom livro. Vá ao cinema,
despretensiosamente. Assista àquele filme que não te ensinará nada porque,
naquele dia, você não quer aprender coisa alguma. Beba, ria e durma
indecorosamente. Desligue os alarmes e retorne só na semana que vem.
Há 30 anos, o mundo era quadrado e precisava dos empreendedores para
mudá-lo para sempre. Hoje, os empreendedores se tornaram quadrados. Dizer
que pensa fora da caixa ou que está fora da curva se tornou a caixa e a
própria curva!
Qual foi a última vez que
você foi você mesmo? Que foi criativo? Que
fez o vídeo de vendas da forma que você queria, não como mandavam os manuais ou
que atendeu o seu cliente falando da sua maneira e não como as normas
mandavam? Quando você foi que você chamou o seu produto pelo nome que
achava mais legal, sem se preocupar com mais ninguém?
O tempo é curto e está
voando. Você quis empreender para ser
dono da própria vida e não está percebendo que hoje todos possuem uma parte de
você. As amarras do empreendedorismo sem sentido são tão ou mais
grossas do que a da CLT.
Fonte:https://medium.com/o-novo-mercado/o-v%C3%ADrus-do-empreendedorismo-sem-sentido-est%C3%A1-acabando-com-voc%C3%AA-fd62c32690d
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