A BÍBLIA ENSINA
QUE A TERRA É PLANA?
Dr. Danny R. Faulkner
Introdução: - Como já discutido anteriormente, a crença de que a
Terra é plana cresceu rapidamente nos últimos tempos, em grande parte através
da disseminação via inúmeros sites da Internet e da influência da mídia social.
Infelizmente, muitos cristãos foram vítimas disso, levados a acreditar que a
Bíblia ensina que a Terra é plana e que, até cinco séculos atrás, a igreja
igualmente ensinou que a Terra é plana. Neste artigo, examinarei muitas das
passagens bíblicas que supostamente ensinam que a Terra é plana, e vou mostrar
que na verdade elas não fazem isso. Mas antes de fazer isso, devo responder a
duas falsas premissas mencionadas acima: que a igreja historicamente ensinava
que a Terra é plana e que isso mudou há 500 anos.
Conforme o estudioso medieval Geoffrey Burton
Russell demonstrou habilmente, ao contrário do conceito geral errôneo, a
igreja medieval não ensinava que a Terra era plana. Tomás de Aquino introduziu o pensamento aristotélico no ensino da
igreja medieval. Escrevendo no século IV a.C., Aristóteles claramente ensinou
que a Terra era esférica. No início do século II a.C., Erastóstenes mediu com
precisão a circunferência da Terra esférica. O Almagesto de Cláudio Ptolomeu
desde o início do século II d.C. forneceu um modelo útil para calcular as
posições dos corpos celestes. Embora esse modelo fosse geocêntrico, ele não
promoveu uma Terra plana, mas em vez disso foi baseado em uma Terra esférica.
As obras de Aristóteles, Erastóstenes e Ptolomeu foram todas amplamente
disponíveis e discutidas no final do período medieval, e continuaram a ser
através da transição para a Renascença. Dado o registro claro da História, por
que é tão comum acreditar hoje que a maioria das pessoas, e especialmente a
igreja, pensavam que a Terra era plana?
Esse conceito errôneo é facilmente atribuído aos
escritos de dois céticos do final do século XIX, John William Draper e Andrew
Dickson White, que inventaram a tese do conflito. A tese do conflito afirma que
a religião em geral, e o cristianismo em particular, impediram o progresso. A
argumentação da tese do conflito era que a Europa medieval estava dominada pela
superstição (cristianismo) que impediu o avanço intelectual, e foi somente
depois que a razão do homem se reafirmou durante a Renascença que o homem
lentamente se tornou livre do dogma religioso, resultando no Iluminismo. É
verdade que quatro séculos atrás a Igreja Católica Romana se opôs ao
ensinamento de Galileu sobre a teoria heliocêntrica. De acordo com a tese do
conflito, foi o suposto ensino geocêntrico da Bíblia que fez com que a Igreja
Católica Romana se opusesse a Galileu. Entretanto, o registro histórico
demonstra que foram os ensinamentos de Aristóteles e Ptolomeu que desempenharam
o papel principal nesse conflito. Isso é, o caso Galileu foi uma batalha entre
duas teorias científicas — geocentrismo e heliocentrismo — com a Bíblia
desempenhando um papel muito menor. Daí a tese do conflito reinterpretou o caso
Galileu em algo que não foi.
Os promotores da tese do conflito também recontaram
a história de Cristóvão Colombo. A maioria das pessoas hoje persiste na crença
de que na época de Colombo quase todos pensavam que a Terra era plana. De
acordo com a história, Colombo era uma das poucas pessoas que pensavam que a
Terra era esférica, e ele entendeu que em uma Terra esférica poderia navegar
para o oeste da Europa para chegar à Índia e à China. Supostamente, Colombo
teve de argumentar contrafortes objeções provenientes daqueles que pensavam que
a Terra era plana para obter apoio para sua expedição. Finalmente, de acordo
com a história, Colombo conseguiu completar uma viagem para o Novo Mundo, e
quando ele voltou para a Europa, as pessoas perceberam que Colombo estava certo
— o mundo era esférico e não plano. Sério? Como a navegação da Europa para o
Caribe e de volta para a Europa provou que o mundo era esférico? Não provou. A
verdade é que ninguém disse a Colombo que ele não poderia chegar ao Extremo
Oriente navegando para o oeste. Todos sabiam que isso era possível, porque
todos sabiam que a Terra era esférica. O problema era que a Terra era muito
grande. A maioria das pessoas entendeu que a distância a oeste da Europa para o
Extremo Oriente era muito maior do que indo para o leste (um olhar para
qualquer globo prova isso). A questão não era como era possível chegar à Ásia
indo para o oeste, mas sim o quanto era viável. A crença era de que o oceano
entre a Europa e a Ásia era vasto, com pouca ou nenhuma terra no meio. Na época
de Colombo, as viagens em águas abertas eram muito arriscadas, e os navios
raramente navegavam mais de três dias fora da vista da terra. Uma viagem a
oeste através do oceano para a Ásia teria exigido meses, sem nenhuma
oportunidade para reabastecimento ou resgate ao longo do caminho se problemas
se desenvolvessem.
Os fatos da História refutam a história comumente
defendida sobre Cristóvão Colombo. Grande parte do trabalho de apoio a uma
Terra plana hoje, indiscriminadamente, repete e baseia-se nessa falsa visão. O
movimento da Terra plana começou em meados do século XIX, ao mesmo tempo em que
a tese do conflito estava sendo desenvolvida. Enquanto os céticos estavam
ridicularizando a Bíblia por supostamente ensinar que a Terra é plana, os
primeiros terraplanistas aceitaram loucamente essa falsa afirmação.
Incontestavelmente, o recente aumento de interesse na Terra plana entre os
cristãos tem sido alimentado pela (falsa) crença de que a Bíblia ensina que a
Terra é plana. Aqueles que se alistaram no movimento da Terra plana nos últimos
tempos, aparentemente, ignoram o fato de que aqueles que promoveram a tese do
conflito fizeram os mesmos argumentos para desacreditar a Bíblia. Isso pode ser
irônico, ou talvez não seja. É possível que certas pessoas que promovem a Terra
plana hoje estejam fazendo o mesmo para desacreditar a Bíblia e o cristianismo
mais uma vez. Neste caso, então os cristãos que têm sido enganados ao acreditar
que a Terra é plana caíram de modo tolo na armadilha. Examinemos as Escrituras
para ver o que elas dizem. Veremos que os promotores da Terra plana não as
manejam melhor do que manejam a História.
A Bíblia Ensina que a Terra tem uma Borda?
Quase todos entendem que uma esfera não tem uma
borda. De fato, podemos viajar indefinidamente em torno de uma esfera e nunca
chegar a um limite ou borda. Por outro lado, se a Terra é plana, ela deve ter
uma borda em algum lugar, a menos que a Terra seja um plano infinito. No
entanto, poucas pessoas atualmente sugerem o último, e ninguém no mundo antigo
o fez. Os céticos da Bíblia gostam de apontar que a frase "quatro cantos
da Terra" aparece três vezes na Bíblia. Seguramente, os céticos afirmam
que isto deve se referir a uma Terra plana e quadrada — provando deste modo que
a Bíblia ensina uma Terra plana. No mínimo, eles argumentam que isso mostra que
os escritores da Bíblia acreditavam em uma das cosmologias da Terra plana do
mundo antigo, provando assim que a Bíblia não é inspirada, mas que as pessoas
que escreveram a Bíblia apenas refletiam a cosmovisão de seus tempos. Existem
alguns exemplos de cosmologias da Terra plana do mundo antigo, mas elas sempre
consistiram de uma Terra plana e redonda. Um círculo era considerado uma forma
muito mais perfeita do que um quadrado, portanto nenhuma das antigas
cosmologias da Terra plana envolvem uma Terra quadrada. Se uma Terra plana e
quadrada fosse a cosmologia da Bíblia, então ela teria estado em desacordo com
cada cosmologia antiga da Terra plana. Portanto, essa tentativa dos céticos de
afirmar que a Bíblia ensina uma Terra plana não se enquadra (trocadilho
intencional) nos fatos da História.
Se os versículos que mencionam os quatro cantos da
Terra não se referem a uma Terra plana, então a que eles se referem? Deixe-me
começar com Apocalipse 7:1, que fala de quatro anjos que estão sobre os quatro
cantos da Terra e que restringem os quatro ventos da Terra. Mesmo os estudantes
mais ardentes da interpretação hiperliteral da Bíblia reconhecem os frequentes
elementos poéticos e o uso de imagens no livro de Apocalipse. Isso se estende
às muitas ocasiões em que números aparecem no livro de Apocalipse. Neste
versículo, o número quatro aparece três vezes. Em cada uso, as coisas
mencionadas estão intimamente ligadas, portanto há uma relação biunívoca entre
cada um dos três grupos de quatro.
Os quatro ventos referem-se às quatro direções das
quais os ventos podem vir: norte, sul, leste e oeste. Muitas vezes usamos essa
nomenclatura hoje, tal como dizer que o vento é “do Oeste. ” A
repetição do número quatro (“quatro anjos… quatro cantos… quatro ventos”) liga
cada anjo e cada canto com uma das quatro direções da bússola. Portanto, não há
fundamento para interpretar esses quatro cantos literalmente, especialmente
quando isso não corresponde com nenhuma cosmologia.
A frase “quatro cantos da terra” provavelmente era
uma expressão idiomática no tempo do apóstolo João, tanto como é hoje em
português, referindo-se a cada posição distante na Terra. Esse é o significado
do contexto de Apocalipse 20:7-8, a outra ocorrência da frase “quatro cantos da
terra” no livro de Apocalipse (a versão King James tem a palavra quadrante aqui
em vez de canto, embora a palavra grega seja a mesma em ambos, Apocalipse 7:1 e
20:7-8). As expressões idiomáticas em uma língua podem ser difíceis de traduzir
para outro idioma, porque uma tradução literal pode não ter sentido na língua
alvo (imagine como uma tradução literal da nossa expressão idiomática “fiquei a
ver navios” seria entendida em outros idiomas). É provável que a compreensão
idiomática da língua portuguesa de “os quatro cantos da terra, ” referente às
partes mais remotas da Terra, provenha de Apocalipse 20:7-8. A partir de uma
avaliação de seu contexto, podemos concluir que esse é também o significado de
“os quatro cantos da terra” em Isaías 11:12, a terceira aparição desta frase na
Bíblia. Seu uso geralmente é entendido como idiomático.
Os céticos da Bíblia frequentemente usam esses três
versículos para argumentar que a Escritura ensina que a Terra é plana. Enquanto
alguns promotores da Terra plana usam esses três versículos, muitos não. Por
quê? Eles provavelmente percebem que uma Terra quadrada com cantos não concorda
com seu modelo de uma redonda Terra plana. Essa é uma omissão notável. Como os
cristãos que acreditam em uma Terra plana, porque creem seriamente que é o que
a Bíblia ensina, lidariam com esses três versículos? Eles provavelmente iriam
interpretá-los tanto como eu os interpreto. Contudo, uma vez que se admita que
algumas passagens bíblicas que supostamente ensinam uma Terra plana são
idiomáticas, é difícil afirmar que passagens semelhantes também não são
idiomáticas. Por exemplo, a frase “extremidades da terra” aparece 28 vezes na
versão King James, e, se tomada literalmente, sugere que a Terra tem uma borda,
o que descartaria uma Terra esférica.
Entretanto, a avaliação crítica de cada uma dessas
28 ocasiões da frase “extremidades da terra” em seus respectivos contextos
mostra claramente que esta frase também é uma expressão idiomática. Por
exemplo, em 12 das 28 ocorrências, a palavra hebraica efes (“extremidade, fim”)
usada em construção com erets (“terra”), prova que os autores bíblicos
tencionaram esta frase como uma referência aos alcances extremos do mundo
habitável. O fato de que esta frase algumas vezes é usada não para falar das
partes distantes da Terra em si, mas sim das pessoas que habitam esses lugares
remotos (por exemplo, Salmos 67:7; 98:3; Isaías 45:22) argumenta
fortemente contra esta frase sendo usada para indicar que a Terra tem uma borda
física.
As Altitudes na Bíblia Ensinam que a Terra é Plana?
Talvez o argumento mais bizarro de que a Bíblia
ensina uma Terra plana se baseia em Daniel 4:11, que diz:
“Crescia a árvore, e se fazia forte, de maneira que
a sua altura chegava até o céu, e era vista até os confins da terra. ”
Esta descrição é repetida quase palavra por palavra
em Daniel 4:20. Ambos, céticos e terraplanistas, argumentam que, numa Terra
esférica, não seria possível que uma árvore fosse visível da Terra inteira, mas
tal árvore poderia ser visível em qualquer lugar em uma Terra plana. Mas qual é
o contexto destes versículos? O quarto capítulo de Daniel é o relato do segundo
sonho de Nabucodonosor. O versículo 5 cita diretamente as palavras de
Nabucodonosor afirmando que ele teve um sonho. Os versículos 10 a 17 citam
Nabucodonosor descrevendo o conteúdo de seu sonho. Note que isso é um sonho.
Com seus elementos selvagens e fantásticos, os sonhos dificilmente são declarações
sobre a realidade, e muito menos a cosmologia. É notável que alguém interprete
o conteúdo do sonho de um rei pagão registrado na Escritura como evidência de
que a Bíblia ensina que a Terra é plana. Os versículos 19 a 27 contêm a
interpretação de Daniel do sonho de Nabucodonosor, e os versículos 28 a 37
relatam o cumprimento do sonho. A chave para a interpretação do sonho é a
identificação de Nabucodonosor com a árvore em seu sonho (versículos 20 a 22).
Imediatamente, deve-se ver que, uma vez que a árvore representa Nabucodonosor,
não é uma árvore literal (embora que, estando em um sonho, a árvore não seria
literal de qualquer maneira). Além disso, o cumprimento literal do sonho não
envolve uma árvore de forma alguma, reforçando a natureza não-literal da árvore.
Mesmo que o sonho reflita corretamente a cosmologia de Nabucodonosor (assumindo
que ele pensava que a Terra era plana), dificilmente constitui evidência de que
a Bíblia ensina que a Terra é plana. Antes, a Bíblia meramente registra o
pensamento de Nabucodonosor.
O mesmo tipo de raciocínio é usado para argumentar
que Mateus 4:8 ensina uma Terra plana. Mateus 4:1-11 dá um relato da tentação
de Jesus. A tentação começou no deserto, depois de Jesus ter jejuado por 40
dias e noites. Satanás primeiro tentou Jesus para transformar pedras em pão
para satisfazer a fome de Jesus (Mateus 4:3). Presumivelmente, isso foi
enquanto ainda estava no deserto. Em seguida, o diabo levou Jesus ao pináculo
do Templo em Jerusalém e sugeriu que Jesus se lançasse para baixo (Mateus 4:5).
Note que havia uma distância considerável entre o deserto e o Templo (pelo
menos 80 quilômetros). Satanás instantânea e literalmente transportou Jesus do
deserto para Jerusalém? Ou Satanás apresentou essa vista a Jesus enquanto ainda
estava no deserto, talvez em uma visão? Mateus 4:8 registra a terceira
tentação:
“Novamente o diabo o levou a um monte muito alto; e
mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. ”
Aqueles que desejam defender uma Terra plana
bíblica apontam que todos os reinos da Terra seriam visíveis de um monte alto
somente se a Terra for plana. Entretanto, se esse monte de Mateus 4:8 com sua
vista de toda a Terra é literal, então, onde ele está? Aqueles que seguem essa
linha de raciocínio nunca determinaram a localização desse monte hipotético. Se
esse monte é hipotético mesmo em uma Terra plana, então este versículo
dificilmente constitui prova de que a Bíblia ensina que a Terra é plana. Mas
este versículo realmente implica a visibilidade de toda a Terra a partir do pico
desse monte?
Os outros dois Evangelhos sinóticos também
registram a tentação de Cristo (Marcos 1:12-13, Lucas 4:1-13), embora o relato
de Marcos não tenha detalhes. Os detalhes do relato de Lucas coincidem com
muitos dos detalhes do registro de Mateus, mas há diferenças. Por exemplo, as
segunda e terceira tentações estão trocadas. Isso não é uma dificuldade, se se
permite que um ou ambos os relatos da tentação de Cristo sejam tratados
tematicamente em vez de cronologicamente. Aqueles que afirmam que a
Bíblia ensina uma Terra plana se concentram no relato de Mateus, mas ignoram
grandemente o Evangelho de Lucas nessa questão. Observe as diferenças entre
Mateus 4:8 (acima) e Lucas 4:5:
“E o diabo o levou para o alto e mostrou-lhe num
momento de tempo todos os reinos do mundo. ”
Note que nenhum monte é mencionado, mas meramente
que o diabo levou Jesus “para o alto” (traduções anteriores baseadas no Textus
Receptus têm a palavra monte, mas a palavra grega para monte não aparece nos
outros manuscritos, portanto sua inclusão no Textus Receptus provavelmente veio
de uma adição de um copista que estava informado do relato paralelo de Mateus).
Esse é um ponto relativamente pequeno, mas pode ter alguma relevância sobre se
o monte que Mateus registrou era literalmente um monte alto do qual todos os
reinos do mundo podiam ser vistos. Mais um detalhe no Evangelho de Lucas lança
luz sobre esta questão. Lucas declarou que o diabo mostrou a Jesus todos os
reinos do mundo “em um instante de tempo. ” A ênfase não é sobre onde Jesus
estava, mas o que Jesus via. Isso não foi um grande panorama que levou algum
tempo para assimilar. Pelo contrário, a glória de todos os impérios do mundo
foi mostrada a Jesus simultaneamente. Isso soa mais como uma visão em vez de
uma vista. Talvez não tenha havido um monte envolvido, mas, mais provavelmente,
se refere a um lugar elevado e desolado, provavelmente no deserto, onde ocorreu
a terceira tentação e sua visão concomitante. Não é de admirar que aqueles que
promovem a Terra plana normalmente se concentram em Mateus 4:8 enquanto ignoram
Lucas 4:5. Conforme mencionado acima, pode-se deduzir incorretamente de Mateus
4:8 que realmente existe um monte tão alto que toda a superfície da Terra é
visível a partir dele, mas através da interpretação da Escritura nos termos da
Escritura, pode-se ver que isso está incorreto.
O Firmamento é um Domo acima da Terra?
A cosmologia da Terra plana defende que um domo
cobre uma Terra plana e circular, com sua borda apoiada na Terra do outro lado
da parede de gelo da Antártida. As estrelas estão afixadas a esse domo,
enquanto o Sol e a Lua estão acima da Terra, mas abaixo do domo. Alguns têm
chamado isso de cosmologia do globo de neve, por causa de sua semelhança com um
globo de neve. Supostamente, esta é a cosmologia que a Bíblia ensina.
Ironicamente, os céticos fazem o mesmo argumento, mas a intenção deles é
desacreditar a Bíblia. Poucos terraplanistas parecem estar cientes desse fato
ou da ironia. Examinemos as Escrituras que supostamente apoiam esta cosmologia.
A chave nesta discussão é o firmamento. A palavra
hebraica raqiya é traduzida como firmamento na versão King James. Ela aparece
um total de 17 vezes no Antigo Testamento, com mais da metade das ocorrências
(nove vezes) só no capítulo 1 de Gênesis. A palavra é um substantivo que deriva
da raiz hebraica rq’, que significa esmagar. Um exemplo dessa ação é prensar ou
pisar um metal em folhas finas. Essa é uma prática comum com o ouro, porque ele
é muito maleável. Douração é o processo de aplicar a folha de ouro aos objetos,
dando a impressão de que os objetos são de ouro puro. Por exemplo, a Arca da
Aliança foi dourada com folha de ouro sobre madeira de acácia (Êxodo 25:10-11).
A folha de ouro pode ser pisada ou esticada tão fina que luz intensa pode ser
vista através dela. A partir do significado desta palavra, podemos deduzir que
raqiya é algo que foi pisado ou estendido.
Infelizmente, algumas pessoas argumentam que, uma
vez que essa é uma ação frequentemente feita a um metal, a coisa sendo
estendida deve ter alguma propriedade física em comum com os metais. Os metais
muitas vezes são sólidos, então, de acordo com esse raciocínio, a raqiya deve
ser sólida. Esse é, certamente, o sentido da palavra arcaica inglesa “firmamento,
” que tem uma raiz em comum com a palavra “firme. ” No entanto, este é o
significado pretendido? Nem todos os metais são sólidos; e o ouro, que está
envolvido no melhor exemplo que ilustra a raiz hebraica a partir da qual o
substantivo hebraico raqiya vem, definitivamente não é sólido. Portanto, é questionável
se a raqiya é algo que é sólido. É mais provável que o significado pretendido
de raqiya esteja relacionado ao processo de esmagamento, não uma propriedade
física do objeto submetido ao processo. O processo tem o efeito de espalhar uma
substância, ou possivelmente tornar a substância fina. É por isso que muitas
traduções mais modernas da Bíblia traduzem raqiya como “expansão” em vez de “firmamento.
”
O primeiro uso da palavra raqiya na Bíblia
provavelmente é útil para decifrar seu significado. Este é encontrado em
Gênesis 1:6, o início do relato da criação do Segundo Dia. O relato da criação
do Segundo Dia começa com a declaração de Deus de que haja uma raqiya para
dividir as águas das águas. O versículo seguinte nos diz que Deus criou a
raqiya e dividiu as águas que estavam abaixo da raqiya das águas que estavam
acima da raqiya. Deste modo, a palavra raqiya aparece três vezes neste
versículo. Antes de declarar o fim do Segundo Dia em Gênesis 1:8, Deus chamou a
raqiya “céus. ” Logo, a palavra hebraica raqiya aparece cinco vezes no relato
do Segundo Dia.
Há várias observações que podemos fazer a partir
desta passagem. Em primeiro lugar, as águas que Deus dividiu foram as águas
mencionadas em Gênesis 1:2. É claro que as águas que Deus separou abaixo devem
se referir à água superficial (principalmente oceanos) na Terra. Mas quais são
as águas acima da raqiya? A forma como respondemos esta pergunta vai depender
do que entendemos que é a raqiya. Note que Deus equipara a raqiya com o céu. A
palavra hebraica shamayim é traduzida como “céus” na maioria das mais de 400
vezes que ocorre no Antigo Testamento, como está aqui.
Interpretando a Escritura em termos de Escritura,
encontramos o reforço da equiparação da raqiya com o céu. Pelo menos onze
versículos do Antigo Testamento falam de Deus estendendo os céus (Jó 9:8;
Salmos 104:2; Isaías 40:22; 42:5; 44:24; 45:12; 48:13; 51:13 Jeremias 10:12;
51:15; Zacarias 12:1). No Segundo Dia, Deus criou a raqiya, algo que é
espalhado ou estendido. Além disso, Deus chamou a raqiya “céus. ” O entendimento
dos céus provavelmente se refere à quando Deus criou a raqiya.
O céu geralmente é entendido como estando acima de
nós. Dependendo do contexto, a palavra pode se referir ao que está
imediatamente acima de nós, onde pássaros voando, nuvens e chuva estão. Também
pode se referir à região dos corpos astronômicos. Finalmente, muitas vezes se
refere à morada de Deus. “Céu” tem todos esses significados, tanto no uso
moderno quanto na Bíblia. Raqiya se refere a todos esses significados, ou
apenas a alguns desses significados?
Os outros aparecimentos da palavra raqiya no relato
da criação em Gênesis 1 podem ajudar a responder a esta pergunta. O próximo uso
da palavra raqiya está no relato do Quarto Dia da criação (Gênesis 1:14-19),
onde aparece três vezes. Cada vez ela aparece em combinação com a palavra
hebraica shamayim. A melhor forma de expressar esse relacionamento em inglês é
com a frase preposicional, “expansão do céu. ” Essa construção enfatiza, para
que não haja qualquer dúvida, que a coisa mencionada no relato do Quarto Dia é
o que Deus fez no Segundo Dia. Em Gênesis 1:14, Deus ordenou que houvesse
luminares no firmamento do céu. Gênesis 1:15 expande a ordem de que sejam
luminares no firmamento do céu. Gênesis 1:17-18 declara que Deus criou os
luminares e os colocou no firmamento do céu. Está claro aqui que os luminares
são os corpos celestes, os luminares maior e menor, e as estrelas também
(Gênesis 1:16). Portanto, o firmamento do céu (a raqiya) é onde Deus colocou os
corpos celestes ou astronômicos. Hoje chamaríamos isso de espaço sideral, ou
simplesmente espaço.
A propósito, alguns terraplanistas parecem fazer
uma distinção aqui que é injustificada. Eles argumentam que as estrelas estão
fixadas em um domo acima da Terra (a raqiya), mas defendem que o Sol e a Lua
(os luminares maior e menor) estão abaixo do domo, entretanto acima da Terra
(isso está em conformidade com a maioria das cosmologias da Terra plana hoje).
Isso exige distinguir artificialmente as estrelas dos luminares maior e menor
em Gênesis 1:17, de modo que apenas os luminares maior e menor são colocados
(isto é, dentro) da raqiya em Gênesis 1:17, enquanto as estrelas são
efetivamente colocadas na superfície da raqiya. Terraplanistas que adotam essa
distinção sugerem que a frase “no firmamento do céu” de Gênesis 1:17 (e
possivelmente Gênesis 1:14-15 também) deve ser entendida como “dentro do
firmamento do céu. ” Isto é, Deus colocou o Sol e a Lua dentro do firmamento,
tanto quanto se poderia colocar um objeto dentro de um recipiente, tal como uma
caixa. A caixa não indica a localização do objeto, mas somente
contém o objeto. Entretanto, o texto hebraico (e até mesmo o texto em inglês)
não permite isso. O pronome plural masculino do versículo 17 remete ao Sol, à
Lua e às estrelas coletivamente, e o verso não distingue quanto à sua
colocação. A compreensão mais natural do relato da criação do Quarto Dia é que
todos os corpos celestes estão localizados na raqiya. Novamente, hoje chamamos
isso de espaço.
Até que ponto a Terra faz a raqiya se estender? O
último uso da palavra em Gênesis 1, no relato da criação do Quinto Dia, é útil
para responder a esta pergunta. Ao descrever a criação dos seres voadores,
Gênesis 1:20 usa a frase “expansão dos céus” para descrever onde eles voam.
Embora esta frase seja a mesma de seus três aparecimentos no relato do Quarto
Dia, a formulação antes desta frase é diferente. O hebraico
literalmente afirma que os pássaros foram voar “sobre a face da expansão dos céus.
” Isso poderia significar que os pássaros voam neste lado do firmamento do céu
ou no lado próximo do firmamento do céu. Se o primeiro, então, a raqiya pode
não se estender até onde os pássaros voam. Se o último, pode incluir onde os
pássaros voam. De qualquer maneira, a raqiya parece incluir o que hoje
chamaríamos de espaço sideral e muito, se não tudo, da atmosfera terrestre.
Tenha em mente que a distinção entre a atmosfera da Terra e o espaço sideral é
de origem moderna. Além disso, mesmo na linguagem de hoje, não há uma
delineação clara sobre onde a atmosfera termina e o espaço começa. Nem o
entendimento moderno nem o antigo está necessariamente certo ou errado; eles
são apenas diferentes.
O próximo uso da palavra raqiya (a décima vez no
Antigo Testamento) não ocorre até Salmos 19:1. O significado ali é condizente
com o que concluí de Gênesis 1. O paralelismo comparativo das duas afirmações
do Salmo 19: 1 indica que raqiya e shamayim são a mesma coisa, algo que Gênesis
1:8 já equiparou. Além disso, o Salmo 19:4-6 descreve o movimento do Sol nos
céus (equivalente à raqiya), reforçando ainda mais o entendimento captado de
Gênesis 1.
E sobre as sete vezes restantes que a palavra
hebraica raqiya aparece no Antigo Testamento fora de Gênesis 1 e Salmo 19? A
palavra aparece mais uma vez nos Salmos, no Salmo 150:1, que se lê, na versão King
James:
“Louvai ao Senhor. Louvai a Deus no seu santuário:
louvai-o no firmamento do seu poder. ”
Como a ordem das palavras é diferente em diferentes
idiomas, algumas passagens, como por exemplo esta, podem ser difíceis de
traduzir. Os tradutores da King James tentaram seguir a ordem das palavras em
hebraico neste versículo. Consequentemente, as duas palavras finais, “seu poder,
” referem-se claramente a Deus, embora isso seja um pouco estranho em inglês. A
Versão Padrão Inglesa (English Standard Version) alterou ligeiramente a ordem
das palavras, de modo que a frase final se lê, “seus poderosos céus. ” Ou seja,
a palavra "poderoso", sinônimo de poder, modifica a raqiya, em vez de
ser descritivo de Deus (note também que a ESV traduziu raqiya como
"céus" aqui, talvez com base em Deus chamando a raqiya
"céus" em Gênesis 1:8). Esta tradução muda o significado, mas essa
diferença de significado é consequente? Deus criou a expansão, portanto, se a
expansão é poderosa, Deus é ainda mais poderoso. No entanto, a versão King
James provavelmente é a tradução correta, ainda que a ordem das palavras seja
estranha. Na Nova Tradução Inglesa, a segunda parte deste versículo diz:
"Louvai-o no céu, o qual testifica da sua força!" Esta formulação,
embora diferente da King James, expressa mais claramente o significado
pretendido pela versão King James. Além disso, esta interpretação é condizente
com o significado muito claro do Salmo 19:1.
A palavra raqiya aparece uma vez no livro de
Daniel. O contexto é estabelecido em Daniel 12:1-2 conforme o eschaton, quando
a ressurreição dos mortos ocorrerá, uns para a vida eterna e outros para o
castigo eterno. Na versão King James, Daniel 12:3 diz:
"Os que forem sábios, resplandecerão como o
brilho do firmamento; e os que converterem a muitos para a justiça como as
estrelas para sempre e eternamente."
Observe o paralelismo contido nestes dois símiles
separados por um ponto e vírgula e a conjunção "e". Claramente, os
"sábios" do primeiro símile e "os que convertem a muitos para a
justiça" do segundo símile são as mesmas pessoas, reforçando pelo menos
uma equivalência aproximada entre as coisas a que eles são
comparados. O primeiro símile diz que o sábio brilhará como o brilho
da raqiya. No segundo símile, as palavras "brilhar" e
"brilho" são omitidas; mas essas palavras estão implícitas, o que
reforça ainda mais o paralelismo. De fato, as pessoas que convertem muitos para
a justiça são comparadas às estrelas, que brilham intensamente. Além disso, a
partir do relato da criação do Quarto Dia de Gênesis 1, sabemos que as estrelas
estão localizadas na raqiya. Portanto, a raqiya de Daniel 12:3 refere-se
claramente à mesma coisa encontrada em Gênesis 1 e Salmo 19:1.
Os últimos cinco aparecimentos da palavra
"raqiya" estão em Ezequiel, quatro vezes no primeiro capítulo e uma
vez no capítulo 10. Ezequiel 1:1-3 define a cena: Ezequiel estava com outros
exilados junto ao canal Quebar (ou rio) quando os céus se abriram e ele
contemplou uma visão. A indicação é que os companheiros de Ezequiel não
enxergaram a visão, mas ele só. Ou Deus transportou Ezequiel para o céu, onde
ele literalmente viu as coisas de sua visão ou Deus as revelou para ele, tanto
como o que alguém pode experimentar em um sonho. Não sabemos ao certo, mas,
dada a descrição, o último parece mais provável. Além disso, a visão de
Ezequiel 11 claramente é do último tipo (Ezequiel 11:1,24).
As primeiras coisas que Ezequiel viu foram quatro
criaturas viventes que se assemelhavam aos homens, mas cada uma tinha quatro
faces. Cada criatura tinha pés e asas e uma roda. As criaturas se moviam em
conjunto, e conforme se moviam, as rodas iam com elas. Ezequiel descreveu as
criaturas como brilhantes e coloridas (Ezequiel 1:7, 13, 16). Ao longo da
descrição de Ezequiel de sua visão, ele repetidamente usou as palavras
"como" e "semelhança". Claramente, Ezequiel teve
dificuldade em descrever o indescritível, então ele expressou o que viu em
termos de coisas familiares para ele. Como tal, é inadequado levar essas
comparações literalmente. Em Ezequiel 1:22, o profeta registrou que acima das
cabeças das quatro criaturas havia alguma coisa semelhante a uma raqiya.
Novamente, observe o uso do símile: Ezequiel não disse que era uma raqiya, mas
que era como uma raqiya. Por outro lado, o que Deus fez no Segundo Dia não era
como uma raqiya; era uma raqiya. Dada a dificuldade que Ezequiel teve ao
descrever o que viu, não podemos ter certeza do que era exatamente essa
expansão. Uma possibilidade é que era meramente um espaço, ou abertura, entre
as quatro criaturas e o que estava acima. O que estava acima? Ezequiel 1:23
descreve as quatro asas da criatura debaixo da expansão. Ezequiel 1:25 registra
que uma voz veio de cima da expansão, e Ezequiel 1:26 afirma que havia algo
como um trono acima da expansão. A partir de Ezequiel 1:28, sabemos que este é
o trono de Deus. Portanto, essa abertura poderia ter sido entre as criaturas e
o trono de Deus.
Entretanto, existe outra possibilidade. Ezequiel
1:22 compara a aparência dessa expansão a um "cristal". A King James
usa a frase "cristal terrível". Infelizmente, a palavra
"terrível" mudou de significado nos últimos quatro séculos. Seu
significado original é melhor traduzido hoje como "impressionante" ou
"imponente". De fato, várias traduções modernas do inglês usam a
palavra "impressionante". (Curiosamente, a Bíblia de Genebra, que é
anterior à versão King James, usa a palavra "maravilhoso", que ainda
é interpretada bem hoje). O que significa ser um cristal? É preciso ter
cuidado, porque as definições modernas e antigas são diferentes. No mundo
antigo, um cristal era qualquer substância que fosse sólida e transparente.
Exemplos incluem vidro, quartzo, sal-gema, diamante e outras pedras preciosas
que transmitem luz. Com exceção do vidro, esses cristais tinham facetas de
ocorrência natural. No entanto, o vidro, particularmente o vidro de chumbo,
pode ser cortado para produzir facetas.
Hoje, definimos um cristal como uma substância
tendo uma matriz ordenada de átomos ou moléculas. Essa matriz ordenada é
responsável pela clivagem natural ao longo das facetas dos cristais (seguindo a
definição antiga). Quase todas as substâncias sólidas têm uma estrutura de
cristal, de modo que a maioria dos cristais (no sentido moderno) não são
transparentes. É importante que entendamos a palavra no sentido antigo, não no
sentido moderno. A palavra traduzida aqui como "cristal" em outra
parte no Antigo Testamento é traduzida como "gelo". No sentido
antigo, o gelo teria sido considerado um cristal, porque era duro e
transparente. No sentido moderno, o gelo é também um cristal, porque possui uma
estrutura cristalina hexagonal. Quer no sentido moderno ou no sentido antigo,
devemos ver essa expansão que Ezequiel descreveu como um cristal literal?
Provavelmente não. Ezequiel comparou o que viu a uma expansão, mas, além disso,
comparou sua aparência a um cristal, sendo a ênfase na luz que emitia. Isto é,
brilhava, incandescia, reluzia ou tinha uma coloração como um cristal. Podemos
descrever o que Ezequiel viu como uma aura.
Uma visão posterior começa em Ezequiel 8, com
Ezequiel 10 sendo uma parte dessa visão. Ezequiel 10:1 menciona uma raqiya
acima das cabeças dos querubins com o que parecia ser um trono acima. Que isso
soa similar à Ezequiel 1, soa. A descrição dos querubins em Ezequiel 10:9-14 é
semelhante à descrição das quatro criaturas viventes em Ezequiel 1:5-21. De
fato, Ezequiel declara duas vezes que esses querubins eram os mesmos que as
quatro criaturas viventes que ele vê em sua visão junto ao canal Quebar
(Ezequiel 10:15, 20-22). Para reiterar, as raqiyas dos capítulos 1 e 10 de
Ezequiel não são as raqiyas encontradas em outras partes no Antigo Testamento.
É um erro igualar displicentemente esses dois significados muito diferentes.
Ambos, céticos e terraplanistas erram nesse ponto.
Desatento dessa distinção, é muito fácil pensar que aquilo que Ezequiel
descreveu como sendo semelhante a uma raqiya é a mesma raqiya que Deus criou no
Segundo Dia e, consequentemente, obtém propriedades da última a julgar pela
precedente. Com as muitas semelhanças entre as visões de Ezequiel brevemente
discutidas acima e a descrição do apóstolo João de parte de sua visão em
Apocalipse 4:6-8, o problema é agravado pela captação de propriedades da raqiya
do Segundo Dia da qual o livro de Apocalipse nos diz. Por exemplo, Apocalipse 4:6
afirma que, diante do trono de Deus, havia um mar de vidro, como cristal.
Supondo que este mar de vidro está abaixo do trono de Deus, e observando que
Ezequiel mencionou o trono de Deus acima de uma expansão (Ezequiel 1:26; 10:1),
pode-se concluir que a expansão de Ezequiel e o mar de vidro de João são a
mesma coisa, vista de lados opostos. Mas, se alguém comparar cada menção da
raqiya no Antigo Testamento, deduz que o mar de vidro de João é a raqiya que
Deus criou no Segundo Dia. Para muitos que aderem ao globo de neve, isso está
perfeitamente alinhado com Isaías 66:1, que diz que o céu é o trono de Deus e a
Terra é o escabelo de seus pés. Ou seja, no modelo do globo de neve, Deus
senta-se logo acima do domo sobre a Terra plana.
Para aqueles que insistem em levar tudo na Bíblia
como estupidamente literal, isso fica repleto de problemas. Por exemplo, Isaías
66:1 declara que o céu é o trono de Deus, mas Ezequiel e João deixaram claro
que o trono de Deus está no céu. Os dois não podem ser literalmente
verdadeiros. Além disso, Deus é espírito (João 4:24) e, portanto, não possui um
corpo físico. Os muitos exemplos de antropomorfismos na Bíblia, sugerindo
coisas como Deus tendo mãos (Salmos 8:3, Isaías 66:2) ou olhos (Provérbios
15:3) claramente não são literais. Há também uma inconsistência no argumento da
Terra plana aqui. Terraplanistas acreditam que o firmamento é um domo
transparente sobre a Terra e, portanto, é curvo. Por outro lado, nenhum corpo
de água é curvo, mas pelo contrário todos os mares têm superfícies planas. Mas
João descreveu um mar de vidro que, por qualquer outro uso, deve ser plano,
então por que esse é curvo?
Os terraplanistas usam um versículo mais que não
contém a palavra raqiya, mas uma palavra relacionada. É Jó 37:18, onde Eliú
perguntou a Jó:
"Estendeste com ele o céu, que é forte, e como
um visor derretido?"
Há várias razões pelas quais é preciso ter cuidado
na captação do significado deste versículo. Primeiro, este versículo está
dentro de uma unidade textual (Jó 37:14-18), que usa poeticamente os fenômenos
climáticos para ilustrar o poder esmagador e a sabedoria de Deus —portanto,
ensinar cosmologia não é o ponto. Em segundo lugar, essas são as palavras de
Eliú, não de Deus. Embora a Bíblia seja inspirada, nem tudo registrado nela é
necessariamente verdadeiro. Esse é um registro verídico do que Eliú disse,
porque Deus considerou conveniente preservar o discurso de Eliú, mas isso não
significa que Eliú falasse infalivelmente. Então, se as palavras de Eliú contêm
informações cosmológicas, elas apenas refletem seu entendimento e não
necessariamente a realidade. Em terceiro lugar, o livro de Jó contém linguagem
e expressões idiomáticas que são exclusivas dele, e muitas são difíceis de
traduzir. Além do mais, Jó, sendo poesia hebraica antiga, evidencia muitos
exemplos de imagens e linguagem fenomenológica. Jó 37:18 contém um caso de
imagens particularmente desafiador.
Observe que a palavra "céu" aparece neste
versículo em vez de "firmamento". Isso acontece porque a palavra
hebraica raqiya não está no texto, mas sim shachaqim (o plural de shachaq) é
usada. O que esta palavra hebraica significa? Ela aparece em suas várias formas
21 vezes no Antigo Testamento. Aparece cinco vezes no livro de Jó, como o faz
em Jó 37:18. Nas outras quatro ocorrências, a versão King James a
traduz como "nuvens" (Jó 35:5; 36:28; 37:21; 38:37). Note que um
destes outros quatro versículos (Jó 37:21) está dentro do contexto literário
imediato do discurso de Eliú. Além disso, dentro desse mesmo contexto, Eliú usa
duas outras palavras hebraicas para descrever as nuvens (anan em 37:15 e ab em
37:16). Portanto, shachaqim em Jó 37:18 provavelmente deveria ser traduzida
como "nuvens" também. Desta maneira, Eliú aqui nem sequer aborda a
cosmologia; se alguma coisa, ele está comentando sobre fenômenos climáticos.
E o termo "visor"? Este é um termo
arcaico para espelho, e as traduções mais modernas o traduzem como tal. A
palavra "derretido" é um pouco confusa, porque hoje podemos pensar
disso como estando em um estado quente e líquido. Nos tempos antigos, espelhos
eram feitos de metal polido, normalmente bronze. Os espelhos eram fabricados
por fundição, então, durante a fundição estavam derretidos, mas, quando em uso,
estavam solidificados. A terminologia aqui provavelmente se refere a como o
espelho foi fabricado, então hoje seria melhor traduzido como um "espelho
fundido" (como em muitas traduções modernas da Bíblia).
E quanto à frase "que é forte"? A versão
King James modificou a palavra céu (ou, como vimos, a palavra que deveria ser
traduzida como "nuvens"). Entretanto, no texto hebraico, a frase
subjacente à tradução ("que é forte") modifica a palavra traduzida
"visor/espelho". Como tal, Eliú não está dizendo que o céu (ou
nuvens) é forte, mas sim está comparando-o em aparência a um espelho forte
(firme ou rígido). Isso faz sentido, pois até hoje nos referimos a condições
severamente nubladas como um "céu de chumbo". Claramente, Eliú não
está falando sobre um domo sólido sobre a Terra.
Discussão
A partir desta breve avaliação de passagens
relevantes do Antigo Testamento, não há evidências claras de que a raqiya é um
domo sólido sobre a Terra. Em vez disso, a raqiya provavelmente é o que hoje
chamamos de espaço e grande parte da atmosfera terrestre. Além disso, passagens
bíblicas que supostamente indicam que a Terra é plana não fazem tal coisa.
Sendo assim, por que terraplanistas e céticos pensam que a raqiya é um domo
rígido que envolve uma Terra plana? O desenvolvimento dessa falsa ideia tem uma
longa história, que só posso resumir brevemente aqui.
A Septuaginta foi uma tradução do Velho Testamento
do século III a.C. do hebraico para o grego. A necessidade dessa tradução foi
que muitos judeus da época já não podiam falar ou ler em hebraico. Isso foi
particularmente verdadeiro para os judeus da diáspora, dos quais muitos viviam
em Alexandria, no Egito, onde a tradução da Septuaginta foi feita. Alexandria
foi uma grande cidade grega e era um centro de aprendizado e cultura grega.
Consequentemente, o povo de Alexandria, incluindo os judeus, foram fortemente
helenizados; e, portanto, os judeus de Alexandria estavam familiarizados com a
ciência então atual.
A cosmologia grega da época defendia uma Terra
esférica concêntrica dentro de uma esfera sólida e transparente muito maior na
qual as estrelas estavam afixadas (a esfera celeste). O Sol, a Lua e cinco
planetas visíveis a olho nu moviam-se em esferas menores dentro da esfera
celeste. A palavra grega steréoma, referente a algo rígido, foi usada para
descrever a esfera celeste. Uma vez que os judeus helenizados da época estavam
cientes dessa cosmologia, não é por acaso que a Septuaginta traduziu a raqiya
como steréoma, aparentemente na tentativa de acomodar a cosmologia de seus
dias. Os primeiros escritos judaicos conhecidos que abordam a cosmologia são do
período medieval e refletem a cosmologia medieval descrita acima. Por isso, não
temos conhecimento em que cosmologia específica os hebreus antigos acreditavam.
Todavia, a palavra grega que os tradutores da Septuaginta escolheram é um forte
indício sobre o que, pelo menos, os judeus helenizados do mundo antigo
pensavam. Provavelmente, era uma Terra esférica centrada na esfera celeste.
Isso é muito diferente de um domo arqueado sobre uma Terra plana que os
terraplanistas promovem.
Vários séculos após a tradução da Septuaginta,
Jerônimo traduziu o Antigo Testamento e o Novo Testamento para o latim.
Jerônimo selecionou a palavra latina firmamentum para traduzir raqiya, uma
palavra análoga à palavra grega steréoma. O modelo rígido e transparente da
esfera celestial dos antigos gregos ainda era a cosmologia dominante nos dias
de Jerônimo. Portanto, ele acomodou essa cosmologia e endossou a interpretação
da Septuaginta sobre o assunto. Muito mais tarde, os tradutores das primeiras
versões inglesas da Bíblia somente transliteraram a escolha de Jerônimo para o
inglês como "firmamento". Isso tem causado problemas desde então,
porque as pessoas reconhecem a palavra "firme" dentro dessa palavra e
presumem que a raqiya deve ser algo rígido. Entretanto, como já vimos, em vez
de se referir a alguma coisa necessariamente rígida, a palavra raqiya
provavelmente se refere a algo que foi estendido. É por isso que muitas
traduções inglesas modernas traduzem a raqiya como "expansão". Esta é
uma boa tradução, porque chega ao coração do que é o provável significado
pretendido de raqiya. Algumas traduções modernas traduzem raqiya como
"céu". Esta também é uma boa tradução, porque o céu que vemos acima
de nós inclui o provável significado da raqiya, conforme discutido
anteriormente.
É uma crença comum hoje que a cosmologia
apresentada na Bíblia é a de um domo rígido sobre a Terra sustentada por
pilares. Claramente, isso está em desacordo com os fatos. Primeiro, a Bíblia
não ensina explicitamente nenhuma cosmologia. Em vez disso, pode-se juntar
certas passagens para resolver qual possível cosmologia pode estar lá, mas é
preciso ter cuidado para não ler essas interpretações de passagens provenientes
de fontes externas.
Nossa abordagem deve ser a exegese, extraindo da
Escritura qual é o provável significado, ao invés de eisegese, interpretando um
significado na Escritura. Como veremos, uma abordagem eisegética foi o que
levou à crença equivocada de que a Bíblia ensina um domo sólido sobre a Terra.
Reconheço que não sou imune a essa dificuldade, mas, pelo menos, admitir a
tentação de interpretar a Escritura através da lente de fatores externos torna
possível estar em guarda. Deixe-me enfatizar novamente que a Bíblia não endossa
explicitamente nenhuma cosmologia. Isso é bom, e é condizente com a sabedoria
de Deus. Se Deus tivesse endossado nas Escrituras uma cosmologia antiga,
aqueles que acreditavam em alguma outra cosmologia antiga teriam descartado a
Bíblia com base em que a cosmologia da Bíblia estava errada. Certamente, o
homem moderno faria esse argumento, porque as cosmologias modernas diferem de
todas as cosmologias antigas. Mas e se Deus tivesse endossado a cosmologia
moderna? Então, as pessoas até tempos relativamente recentes teriam descartado
a Bíblia, porque, em suas mentes, ela ensinava a cosmologia errada.
Em segundo lugar, embora não seja uma fonte
inspirada, Josefo frequentemente reflete o pensamento dos judeus no primeiro
século d.C. Josefo viveu em Israel, não em Alexandria, mas seus escritos
mostram evidências da helenização. Uma vez que sua seita foi a única a
sobreviver à perseguição e destruição que vieram em 70 d.C., sua obra passou a
ser reconhecida como representando os judeus de seu tempo. Contudo, Josefo
distorceu as ideias das outras seitas e apresentou sua própria seita com o
melhor aspecto possível. Esse tipo de distorção se estendeu até a sua
apresentação das crenças religiosas das outras seitas. Deste modo, devemos ter
muito cuidado ao usar Josefo. Com essa ressalva, o que os escritos de Josefo
revelam sobre a cosmologia entre pelo menos alguns dos judeus antigos? Seu
relato da criação do Segundo Dia é condizente com a cosmologia grega de seu
tempo, mas não com a cosmologia do domo arqueado.
Em terceiro lugar, a cosmologia do Ocidente ao longo
do período medieval foi a dos gregos antigos, não um domo arqueado sobre uma
Terra plana. Foi dentro dessa cosmologia que o astrônomo do segundo século
d.C., Cláudio Ptolomeu, desenvolveu seu modelo para explicar os movimentos dos
planetas. O modelo ptolomaico foi derrubado (juntamente com os outros elementos
da cosmologia grega antiga) há apenas quatro séculos a favor de cosmologias
mais modernas, como a teoria heliocêntrica.
Se o domo arqueado não é a cosmologia da Bíblia,
como tanta gente chegou a pensar que era? Essa ideia surgiu como resultado de
três acontecimentos no século XIX. Primeiramente, a arqueologia moderna começou
de fato no século XIX. Interpretações de escavações iniciais no Oriente Próximo
indicaram uma cosmologia de domo arqueado, a partir da qual os arqueólogos e
historiadores concluíram erroneamente que esta era a antiga cosmologia do
Oriente Próximo.
Segundo, a hipótese documentária propôs que o
Pentateuco foi escrito muito depois do que o tempo de Moisés (e muitos de seus
proponentes duvidam se Moisés existiu mesmo). De acordo com a hipótese
documentária, quatro documentos diferentes surgiram na primeira metade do
primeiro milênio a.C., e essas fontes foram redatadas muito mais tarde, durante
o período intertestamentário. Supostamente, os judeus pegaram grande parte de
sua cosmologia, cosmogonia e história inicial a partir das antigas culturas do
Oriente Próximo, e estas estão refletidas nos relatos da criação e dilúvio de
Gênesis. Por isso, tornou-se moda interpretar as passagens bíblicas em termos
da suposta cosmologia dominante do domo arqueado.
Terceiro, a tese do conflito afirmou que o
cristianismo impediu o desenvolvimento do pensamento durante toda a Idade
Média, até que o homem, alegadamente, foi liberto das restrições da Bíblia
durante a Renascença, em que a razão do homem permitiu uma renovação no
aprendizado. Parte do caso criado contra o cristianismo como parte da tese do
conflito foi que a igreja e a Bíblia ensinaram que a Terra era plana e estava
rodeada por um domo arqueado. Conforme demonstrado em outra parte, a igreja
nunca ensinou que a Terra é plana. Uma mentira tão patente deve pôr em dúvidas
a alegação sobre o domo arqueado sendo a cosmologia bíblica também. A gravura
de Flammarion é uma representação muito famosa do domo arqueado sobre a Terra
plana. A maioria das pessoas pensam que essa é uma obra de arte medieval, mas
data da década de 1880. É dificultoso encontrar quaisquer representações
medievais da suposta cosmologia do domo arqueado/Terra plana da Bíblia porque isso
não era acreditado na Idade Média. A influência da gravura de Flammarion, tal
como utilizada pelos promotores da tese do conflito, não pode ser
superestimada. Essa representação parece ter feito mais do que qualquer outra
coisa promover a falsa noção de que a cosmologia medieval era um domo arqueado
sobre uma Terra plana.
O domo arqueado nem sequer foi a cosmologia
dominante no antigo Oriente Próximo. Escavações e estudos posteriores revelaram
uma infinidade de cosmologias antigas do Oriente Próximo. Se alguém deseja
interpretar a cosmologia da Bíblia em termos da cosmologia do antigo Oriente
Próximo, então primeiro deve decidir qual cosmologia usar. Infelizmente, muitos
estudiosos da Bíblia hoje têm sido enganados pela tese do conflito ao pensar
que a cosmologia da Bíblia é a de um domo arqueado sobre uma Terra plana, o que
levou a muitas representações do século XX e XXI de uma Terra plana com um domo
arqueado acima, apoiada por pilares. Entretanto, tais representações começaram
a aparecer no século XIX, após o dano causado pela tese do conflito. Essa linha
de pensamento tem ganhado muita força nos últimos anos. Por exemplo, a Nova
Versão Internacional da Bíblia, lançada pela primeira vez em 1984, traduziu
originalmente a raqiya como "céu", mas a edição atualizada publicada
em 2011 a traduziu como "abóbada". Novamente, essa falsa compreensão
da cosmologia bíblica por alguns estudiosos da Bíblia (estudiosos que, de modo
geral, têm sido enganados pela tese do conflito) é relativamente recente.
Para agravar o problema, os cristãos que endossam a
Terra plana usam descrições de teólogos contemporâneos que retratam
erroneamente a cosmologia bíblica como uma Terra plana sob um domo arqueado
como evidência do que a Bíblia ensina. Portanto, são duas vezes vítimas da tese
do conflito, uma em abraçar uma Terra plana, e mais uma vez em aceitar a falsa
cosmologia do domo arqueado. De novo, esse conceito de cosmologia bíblica não
veio de fontes antigas, mas, pelo contrário, surgiu no final do século XIX como
uma tentativa de desacreditar a Bíblia. Aqueles que apoiam a Terra plana
acreditando que isso é o que a Bíblia ensina caíram em uma armadilha.
Ironicamente, embora aparentemente motivados para defender a Bíblia, têm sido
enganados ao usar os mesmos falsos argumentos que os céticos usam.
Conclusão
Aqui, eu examinei as passagens bíblicas que
terraplanistas geralmente usam para alegar que a Bíblia ensina que a Terra é
plana. Há outras passagens que terraplanistas ocasionalmente usam. Contudo, a
frequência de uso dessas passagens é muito menor do que os versículos que
discuti aqui. Além disso, esses versos restantes geralmente requerem a
suposição de que a Terra é plana, para começar. Uma vez que essas passagens
mais importantes, frequentemente citadas são descartadas como ensinando uma
Terra plana, os poucos versículos restantes provavelmente não importam.
Dependendo da reação a este artigo, posso utilizar essas outras passagens mais
tarde. Claramente, a Bíblia não ensina que a Terra é plana. Foram os céticos da
Bíblia que introduziram essa falsa alegação no século XIX. É uma vergonha que
crentes professos da Bíblia recentemente tenham abraçado esse falso argumento e
passado a promover a Terra plana. Quando combinada com os muitos problemas
científicos e observacionais, a teoria da Terra plana é desacreditada.
O modelo de Terra do globo de neve exige que a
Terra fique imóvel. Por isso, terraplanistas são geocentristas, e muitos deles
também apoiam sua posição com passagens bíblicas que, supostamente, ensinam que
a Terra é estacionária. Antes do recente aumento do interesse na Terra plana
entre os cristãos conservadores, já houve um movimento geocêntrico usando
muitos dos mesmos argumentos que terraplanistas usam agora. Embora
geocentristas clássicos e terraplanistas concordem com a questão de se a Terra
se move, discordam fortemente sobre o formato da Terra. Anteriormente escrevi
sobre o geocentrismo e discuti algumas das passagens bíblicas que supostamente
ensinam o geocentrismo. Talvez em um futuro artigo eu reveja o assunto do
geocentrismo e as supostas passagens bíblicas que o apoiam.
Leitura recomendada: